terça-feira, 29 de novembro de 2011

Uma nova leitura de "As palavras e as coisas".




A obra As palavras e as coisas (1966), do filósofo francês Michel FOUCAULT, ganha uma nova leitura este ano. O meu amigo e parceiro de escrita EDUARDO BENTO (foto) acaba de apresentar sua bela monografia intitulada "A população como operadora das transformações no saber da linguagem a partir da perspectiva de Michel Foucault". Esta nova abordagem  revela ao leitor uma discussão ainda recente dentre os pesquisadores em Filosofia Contemporânea, pois trata-se de uma articulação entre a obra de referência, principalmente com um aprofundamento acerca do "saber da linguagem", e uma aula do filósofo, de 1978, transcrita para uma série de volumes chamado Ditos e escritos, na qual Foucault, doze anos após ter dado o imprimatur ao título original Les mots et les choses, fala sobre as críticas ao seu texto a partir de várias releituras suas, notadamente provocado por demais estudiosos. 
      Apresentarei abaixo apenas os últimos fragmentos do texto do Eduardo que, a saber, articula-se também com as ideias notáveis que rondaram por esses anos o Quadrado dos devires e as demais vizinhanças proponentes...



      Há quem defenda a repetição da representação; há quem a critique veementemente. Existem aqueles que entendem que há diferença no desejo e semelhança na imaginação. Já outros veem, na história, a imagem sem pensamento, ainda que o pensamento possa efetivar-se sem imagem alguma, em defesa do etecetera. Ainda há quem critique, elogie, inverta, subverta e até mesmo perverta positivamente o pensamento e as obras de Foucault, principalmente entre as palavras e a ordem das coisas... 

      O que tentamos descrever, muito antes de qualquer pretensão em estabelecer uma conclusão geral e teleológica acerca deste estudo, foi como a arqueologia, juntamente com a genealogia e as análises das formações discursivas das técnicas de poder, forma como que um “ciclo” de comparações, ou aproximações entre enunciados, dentro de amplas perspectivas presentes em um único autor; neste caso, um autor e duas obras (Les mots et les choses e Segurança, Território, População)[1].

      O projeto de Les mots et les choses se fez pela hipótese de mostrar a história das ciências humanas, e quais modificações elas promoveram na ordem do saber; foi isso que o nosso estudo procurou descrever acerca do saber da linguagem. E assim, quanto mais o discurso das ciências humanas se unificava, mais o sujeito se dispersava naquilo que era dito. É justamente por esse motivo que a figura do homem, para Foucault, vivera apenas por 200 anos na história do Mesmo, onde o seu rosto mal se constituiu e prontamente se esvaiu. De tal sorte que é anunciada, pois, a morte desse homem empírico-transcendental, que as ciências humanas quiseram, a todo instante, analisar em sua essência; daí advém a crítica de Foucault. Com tudo isso, podemos dizer que o fim desse homem para Foucault corresponde diretamente com a morte de Deus anunciada por Nietzsche. Por conseguinte é pela força que a linguagem possui que “talvez o homem esteja em vias de desaparecer”[2].

      Ademais, essa força que a linguagem adquire está relacionada com a literatura, como autêntica experiência da linguagem. É por isso que a loucura se manifesta com avidez na arte, e se dá como um lugar onde se faz presente o questionamento, pelas formas indispensáveis de se dizer o impensável, ou inefável, a partir de Bataille, Kafka, Blanchot etc. Portanto, a literatura é apresentada como transgressão na ordem das coisas.

* * *

      O ponto central que Foucault apresentou em Les mots et les choses, e que nós procuramos descrever minuciosamente neste estudo, é o da crítica à busca por uma origem, por uma essência primeira como verdade do homem; no entanto deve-se renunciar aquilo que Foucault chama de “sono antropológico”. A arqueologia, não entendida como solução prática de alguma questão posta em suspenso, mas antes compreendida como análise das condições possíveis para a formação de determinado saber; ela evita que deixemos um discurso sobrevir como uma verdade objetiva, desvelada, por uma razão que se ilumina e evolui até chegar à sua maioridade; eis novamente a crítica do arqueólogo do saber, que se faz por uma analítica ao despir a “verdade” construída por um discurso pelo qual “cada época arma e faz valer certos saberes”[3]...

      Sobre os enunciados em Les mots et les choses, Gilles Deleuze assim se expressa:

(...) não se trata de coisas nem de palavras. Nem tampouco de objeto ou de sujeito. Nem mesmo de frases ou proposições, de análise gramatical, lógica ou semântica. Longe de serem síntese de palavras e de coisas, longe de serem composições de frases e de proposições, os enunciados, ao contrário, são anteriores às frases, ou às proposições que os supõem implicitamente, são formadores de palavras e objetos. [4]


      O arqueólogo trata, portanto, especificamente das análises de como se forma um saber com um enunciado que se encontra dentro de determinado saber (da linguagem, por exemplo)...

* * *

      Para “concluir”, nosso estudo abordou acerca dos modernos mecanismos de poder a partir do chamado governo das populações, em sua efetividade na transformação da gramática geral à filologia. Isso evidenciou que a temática do homem, apresentado no campo “analítico” das ciências humanas como um ser vivo, trabalhador e sujeito falante, se dá com a emergência da população “como correlato de poder e objeto de saber”[5]. Esse mesmo homem, pensado, analisado e definido pelas “ciências humanas” é a imagem da população no século XIX. O homem foi, portanto, o problema central do saber-poder, que se realiza pela noção de governo – não de soberania – das populações; e a linguagem, expressa pelo homem, sofre as transformações dentro do campo epistêmico a partir das mesmas técnicas de poder, e também do objeto que se emerge a partir delas: o saber da linguagem finalmente se efetiva pelo governo das populações.



[1] Cabe salientar que, para Foucault, há uma recusa da autoridade do autor sobre sua obra. Um texto pode ser utilizado como bem entender por aqueles que estão em contato com determinado escrito. O autor não é o que importa, mas antes a exterioridade dos escritos. MUCHAIL, Salma Tannus. “Michel Foucault e o dilaceramento do autor”, in Foucault, simplesmente. São Paulo, Edições Loyola, 2004, pp. 123-131.  
[2] Cf. FOUCAULT, Michel. Dits et écrits. Paris, Gallimard, 1994, p. 397. 
[3] Cf. ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba, UFPR, 2008, p. 56. 
[4] DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo, Brasiliense, 1991, p. 24.  
[5] FOUCAULT, Michel. Segurança, Território, População. São Paulo, Martins fontes, 2008, p. 103.  

PARAMARINA



Doravante não serei triste
como um vulto lacrimejante

Doravante não serei avante
mas serei presente

quero o presente intenso:
Acontecimento


ou somente um sol a expandir meu peito
e seja lá o que isso queira dizer

pois quero aquilo que não se diz
e tampouco se escreve

mais ou menos como a brisa no rosto
a fina flor e a sua verve

mais ou menos como uma menina
que é vida, que é Marina.


sábado, 19 de novembro de 2011

O último texto de Gilles Deleuze: "A imanência: uma vida..."



Giorgio AGAMBEN, um dos mais interessantes filósofos contemporâneos, escreveu que "o título L'imannence: une vie..., considerado como um bloco a-sintagmático e, no entanto, indivisível, é algo como um diagrama que condensa em si o pensamento derradeiro de Deleuze"[1]. Talvez possamos acrescentar que, além de sintético, A imanência: uma vida... é o texto em que o nosso autor aprofunda uma das noções mais complicadas de sua filosofia para um leitor recente, mas que exibe a fatal distinção imanência/transcendência que cruza toda sua obra, ou melhor, apresenta aquilo que Deleuze perseguiu sua vida inteira: o “campo transcendental”. Publicaremos aqui o texto na íntegra com o intuito de agenciar merecidas pesquisas.
  

A imanência: uma vida...
Gilles Deleuze


O que é um campo transcendental? Ele se distingue da experiência, na medida em que não remete a um objeto nem pertence a um sujeito (representação empírica). Ele se apresenta, pois, como pura corrente de consciência a-subjetiva, consciência pré-reflexiva impessoal, duração qualitativa da consciência sem um eu [moi]. Pode parecer curioso que o transcendental se defina por tais dados imediatos: falaremos de empirismo transcendental, em oposição a tudo que faz o mundo do sujeito e do objeto. 

Há qualquer coisa de selvagem e de potente num tal empirismo transcendental. Não se trata, obviamente, do elemento da sensação (empirismo simples), pois a sensação não é mais que um corte na corrente da consciência absoluta. Trata-se, antes, por mais próximas que sejam duas sensações, da passagem de uma à outra como devir, como aumento ou diminuição de potência (quantidade virtual). Será necessário, como conseqüência, definir o campo transcendental pela pura consciência imediata sem objeto nem eu [moi], enquanto movimento que não começa nem termina? (Até mesmo a concepção espinosista dessa passagem ou da quantidade de potência faz apelo à consciência). 

Mas a relação do campo transcendental com a consciência é uma relação tão-somente de direito. A consciência só se torna um fato se um sujeito é produzido ao mesmo tempo que seu objeto, todos fora do campo e aparecendo como “transcendentes”. Ao contrário, na medida em que a consciência atravessa o campo transcendental a uma velocidade infinita, em toda parte difusa, não há nada que possa revelá-la. Ela não se exprime, na verdade, a não ser ao se refletir sobre um sujeito que a remete a objetos. É por isso que o campo transcendental não pode ser definido por sua consciência, a qual lhe é, no entanto, co-extensiva – mas ela subtrai-se a qualquer revelação. 

O transcendente não é o transcendental. Na ausência de consciência, o campo transcendental se definiria como um puro plano de imanência, já que ele escapa à toda transcendência, tanto do sujeito quanto do objeto. A imanência  absoluta é em si-mesma: ela não existe em alguma coisa, para alguma coisa, ela não depende de um objeto e não pertence a um sujeito. 

Em Espinosa, a imanência não existe para a substância, mas a substância e os modos existem na imanência. Quando o sujeito e o objeto, que caem fora do campo de imanência, são tomados como sujeito universal ou objeto qualquer aos quais a imanência é, ela própria, atribuída, trata-se de toda uma desnaturação do transcendental que não faz mais do que reduplicar o empírico (como em Kant), e de uma deformação da imanência que se encontra, então, contida no transcendente. A imanência não está relacionada a Alguma Coisa como unidade superior a toda coisa, nem a um Sujeito como ato que opera a síntese das coisas: é quando a imanência não é mais imanência para um outro que não seja ela mesma que se pode falar de um plano de imanência. Assim como o campo transcendental não se define pela consciência, o plano de imanência não se define por um Sujeito ou um Objeto capazes de o conter. 

Diremos da pura imanência que ela é UMA VIDA, e nada diferente disso. Ela não é imanência para a vida, mas o imanente que não existe em nada é, ele próprio, uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a imanência absoluta: ela é potência completa, beatitude completa. É na medida em que ele ultrapassa as aporias do sujeito e do objeto que Fichte, em sua última filosofia, apresenta o campo transcendental como uma vida, que não depende de um Ser e não está submetido a um Ato: consciência imediata absoluta, cuja atividade mesma não remete mais a um ser, mas não cessa de se situar em uma vida. O campo transcendental torna-se então um verdadeiro plano de imanência que re-introduz o espinosismo no mais profundo da operação filosófica. Não é uma aventura semelhante que sobrevém a Maine de Biran, em sua “última filosofia” (aquela que ele estava demasiadamente fatigado para levar a bom termo), quando ele descobria, sob a transcendência do esforço, uma vida imanente absoluta? O campo transcendental se define por um plano de imanência, e o plano de imanência por uma vida. 

O que é a imanência? uma vida... Ninguém melhor que Dickens narrou o que é uma vida, ao tomar em consideração o artigo indefinido como índice do transcendental. Um canalha, um mau sujeito, desprezado por todos, está para morrer e eis que aqueles que cuidam dele manifestam uma espécie de solicitude, de respeito, de amor, pelo menor sinal de vida do moribundo. Todo mundo se apresta a salvá-lo, a tal ponto que no mais profundo de seu coma o homem mau sente, ele próprio, alguma coisa de doce penetrá-lo. Mas à medida que ele volta à vida, seus salvadores se tornam mais frios, e ele recobra toda sua grosseria, toda sua maldade. Entre sua vida e sua morte, há um momento que não é mais do que aquele de uma vida jogando com a morte. A vida do indivíduo deu lugar a uma vida impessoal, e entretanto singular, que despreende um puro acontecimento, liberado dos acidentes da vida interior e da vida exterior, isto é, da subjetividade e da objetividade daquilo que acontece. “Homo tantum” do qual todo mundo se compadece e que atinge uma espécie de beatitude. Trata-se de uma heceidade, que não é mais de individuação, mas de singularização: vida de pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, uma vez que apenas o sujeito que a encarnava no meio das coisas a fazia boa ou má. A vida de tal individualidade se apaga em favor da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome, embora ele não se confunda com nenhum outro. 

Essência singular, uma vida...
Não deveria ser preciso conter uma vida no simples momento em que a vida individual confronta o morto universal. Uma vida está em toda parte, em todos os momentos que tal ou qual sujeito vivo atravessa e que tais objetos vividos medem: vida imanente que transporta os acontecimentos ou singularidades que não fazem mais do que se atualizar nos sujeitos e nos objetos. Essa vida indefinida não tem, ela própria, momentos, por mais próximos que sejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos. Ela não sobrevém nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio no qual vemos o acontecimento ainda por vir e já ocorrido, no absoluto de uma consciência imediata. A obra romanesca de Lernet-Holenia coloca o acontecimento em um entre-tempo que pode devorar regimentos inteiros. As singularidades ou os acontecimentos constitutivos de uma vida coexistem com os acidentes d’avida correspondente, mas não se agrupam nem se dividem da mesma maneira. Eles se comunicam entre eles de uma maneira completamente diferente da dos indivíduos. Parece mesmo que uma vida singular pode passar sem qualquer individualidade ou sem qualquer outro concomitante que a individualize. Por exemplo, as crianças bem pequenas se parecem todas e não têm nenhuma individualidade; mas elas têm singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta, acontecimentos que não são características subjetivas. As crianças bem pequenas, em meio a todos os sofrimentos e fraquezas, são atravessadas por uma vida imanente que é pura potência, e até mesmo beatitude. Os indefinidos de uma vida perdem toda indeterminação na medida em que eles preenchem um plano de imanência ou, o que vem a dar estritamente no mesmo, constituem os elementos de um campo transcendental (a vida individual, ao contrário, continua inseparável das determinações empíricas). O indefinido como tal não assinala uma indeterminação empírica, mas uma determinação de imanência ou de uma determinabilidade transcendental. O artigo indefinido não é a indeterminação da pessoa a não ser na medida em que é a determinação do singular. O Uno não é o transcendente que pode conter mesmo a imanência, mas o imanente contido em um campo transcendental. 

O Uno é sempre o índice de uma multiplicidade: um acontecimento, uma singularidade, uma vida... Pode-se sempre invocar um transcendente que recai fora do plano de imanência, ou mesmo que atribui imanência a si próprio: permanece o fato de que toda transcendência se constitui unicamente na corrente de consciência imanente própria a seu plano. A transcendência é sempre um produto de imanência. 

Uma vida não contém nada mais que virtuais. Ela é feita de virtualidades, acontecimentos, singularidades. Aquilo que chamamos de virtual não é algo ao qual falte realidade, mas que se envolve em um processo de atualização ao seguir o plano que lhe dá sua realidade própria. O acontecimento imanente se atualiza em um estado de coisas e em um estado vivido que fazem com que ele aconteça. O plano de imanência se atualiza, ele próprio, em um Objeto e um Sujeito aos quais ele se atribui. Mas, por mais separáveis que eles sejam de sua atualização, o plano de imanência é, ele próprio, virtual, na medida em que os acontecimentos que o povoam são virtualidades. Os acontecimentos ou singularidades dão ao plano toda sua virtualidade, como o plano de imanência dá aos acontecimentos virtuais uma plena realidade. O acontecimento considerado como não-atualizado (indefinido) não carece de nada. É suficiente colocá-lo em relação com seus concomitantes: um campo transcendental, um campo de imanência, uma vida, singularidades. Uma ferida se encarna ou se atualiza em um estado de coisas e em um vivido; mas ela própria é um puro virtual sobre o plano de imanência que nos transporta em uma vida. Minha ferida existia antes de mim... Não uma transcendência da ferida como atualidade superior, mas sua imanência como virtualidade, sempre no seio de um milieu (campo ou plano). Há uma grande diferença entre os virtuais que definem a imanência do campo transcendental, e as formas possíveis que os atualizam e que os transformam em alguma coisa de transcendental.


[1] ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo, Ed. 34, 2000, pp. 169-192. Tradução brasileira: Cláudio William Veloso.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Em defesa do etc. com Deleuze.

Gilles Deleuze e Claire Parnet.

Apresento-lhes um fragmento da minha monografia sobre o filósofo francês Gilles Deleuze. Trata-se de uma leitura do livro Diferença e repetição (1968).


Deleuze invoca um pensamento que se arrisque em aventuras diferenciais, um pensamento criador, de encontros, um pensamento, portanto, do Acontecimento. Talvez todo o esforço do nosso autor tenha sido o de marcar uma Filosofia da diferença e da repetição por um pensamento sem Imagem em favor dos processos dinâmicos que, por meio das relações diferenciais, ou melhor, por meio das atualizações das múltiplas virtualidades da Ideia, nos permite distribuições nômades, heterotopias, digamos, notáveis. Um pensamento sem Imagem pode, para além de uma possibilidade condicionada, aumentar as nossas potências[1].

Poemas, romances, filmes, canções... Estas são forças capazes de abalar a tranquilidade e a segurança dada pela Imagem. Suas linhas de ação são diferenciais bem como as notáveis posições de um embrião, os inúmeros e singulares contorcionismos que há dentro de um ovo. Forças essas que pensam e que forçam a pensar. A criação é processada pela diferença, pelo complexo diferenciação e diferençação da Ideia. Como o encontro de pontos notáveis é um Acontecimento, ele não é um resultado preexistente e passivo de erro por metódicas proposições. Nada disso. É a novidade que consideramos singular, notável e extraordinária: uma arte que nos tira dos eixos e abala os oito postulados da Imagem do pensamento e que, com a diferença e a repetição, faz nascer um pensamento sem Imagem. Com isso queremos dizer que “pensar é criar, não há outra criação, mas criar é, antes de tudo, engendrar ‘pensar’ no pensamento”[2]. Se pensar é algo forçado, como fica a boa natureza ou mesmo a boa vontade do pensamento requisito do primeiro postulado? Vemos que as nossas questões mudam de figura porque agora é preciso perguntar pelo trabalho da recognição e, em consequência deste, o da representação, ou seja, diante do novo os critérios da generalidade são silenciados quando passamos a entender que


O que se estabelece no novo não é precisamente o novo, pois o próprio do novo, isto é, a diferença, é exigir, no pensamento, forças que não são as da recognição, nem hoje, nem amanhã, potências de um modelo totalmente distinto, numa terra incógnita nunca reconhecida, nem reconhecível. [3]

                                                                     

Tal é a exigência das criações: o novo não nasce velho. As artes denunciam os condicionamentos que as submetem aos critérios de igualdade e de semelhança. Portanto, procedem na contramão dos regulamentos e mediações, mas não o fazem de maneira dialética, pois os movimentos notáveis não têm o negativo como motor, porém, antes, têm a afirmação, isto é, pontos extraordinários fazendo com que “a Diferença se expresse com uma força repetitiva de cólera”[4].



[1] Aqui devemos entender a palavra potência no sentido que vemos em Spinoza e Nietzsche, não como simples possibilidade, sentido aristotélico do termo. Ver, por exemplo: DELEUZE, Gilles. Espinosa, filosofia prática. São Paulo, Escuta, 2002, pp. 23-35. Tradução brasileira: Daniel Lins e Fabien Pascal Lins.
[2] DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. São Paulo, Graal, 2009, p. 213. Tradução brasileira: Roberto Machado e Luiz B. L. Orlandi.
[3] Ibid., 198.
[4] Ibid., p. 404.

domingo, 6 de novembro de 2011

Neruda e a "inenarrabilidade do prazer".



A expressão "prazer inenarrável" é, no mínimo, provocante. Depois de algumas tardes a ler os poemas de NERUDA, podemos sentir sutis arrepios e uma "vontade louca" de narrá-los. Sim: começar pelas cores! Como são amarelos os versos de Neruda. São estações do ano, flores, pássaros, montanhas, ventos e águas amarelados, amarelescidos ou amarelescendo. AMARELO é palavra bonita, ela é assim inenarrável... E o que dizer, num sentido forte deste termo, dos ombros e do peito da moça sobre os ombros e o peito do moço? Além disso, percorremos profundidades cósmicas à beira do delirante a sentir um ácido ar que pelas narinas alcançam os pulmões. Pois é preciso ter pulmões para ler Neruda, não um amor. Ora, e por que um amor para ler poesia? Por que uma paixão para ouvir uma cancioneta? Podemos amar os pontos e apaixonarmos pelas letras. Podemos narrar júbilos confusos e escrever exorbitantes textos sobre prazeres. Quem ou o que impede? É isso, sobretudo, o que perguntamos. E não fiquemos mal ao narrar se esquecermos de algum abraço ou beijo no queixo antes de dedos alegres visitarem as rendas do vestido.


"Amor, de grano a grano, de planeta a planeta,
la red del viento con sus países sombrios,
la guerra con sus zapatos de sangre
o bien el día y la noche de la espiga.

Por donde fuimos, islas o puentes o banderas,
violines del fugaz otoño acribillado, 
repitió la alegría los labios de la copa,
el dolor nos detuvo con su lección de llanto.

En todas las repúblicas desarrollaba el viento
su pabellón impune, su glacial cabellera
y luego regresaba la flor a sus trabajos.

Pero en nosotros nunca se calcinó el otoño.
Y en nuestra patria inmóvil germinaba y crecía
el amor con los derechos del rocío."


(Pablo NERUDA, poema XXVIII de Cien sonetos de amor.)