A obra As palavras e as coisas (1966), do filósofo francês Michel FOUCAULT, ganha uma nova leitura este ano. O meu amigo e parceiro de escrita EDUARDO BENTO (foto) acaba de apresentar sua bela monografia intitulada "A população como operadora das transformações no saber da linguagem a partir da perspectiva de Michel Foucault". Esta nova abordagem revela ao leitor uma discussão ainda recente dentre os pesquisadores em Filosofia Contemporânea, pois trata-se de uma articulação entre a obra de referência, principalmente com um aprofundamento acerca do "saber da linguagem", e uma aula do filósofo, de 1978, transcrita para uma série de volumes chamado Ditos e escritos, na qual Foucault, doze anos após ter dado o imprimatur ao título original Les mots et les choses, fala sobre as críticas ao seu texto a partir de várias releituras suas, notadamente provocado por demais estudiosos.
Apresentarei abaixo apenas os últimos fragmentos do texto do Eduardo que, a saber, articula-se também com as ideias notáveis que rondaram por esses anos o Quadrado dos devires e as demais vizinhanças proponentes...
Há quem defenda a repetição da representação; há quem a
critique veementemente. Existem aqueles que entendem que há diferença no desejo
e semelhança na imaginação. Já outros veem, na história, a imagem sem
pensamento, ainda que o pensamento possa efetivar-se sem imagem alguma, em
defesa do etecetera. Ainda há quem critique, elogie, inverta, subverta e
até mesmo perverta positivamente o pensamento e as obras de Foucault,
principalmente entre as palavras e a ordem das coisas...
O que tentamos descrever, muito antes de qualquer pretensão
em estabelecer uma conclusão geral e teleológica acerca deste estudo, foi como
a arqueologia, juntamente com a genealogia e as análises das formações discursivas
das técnicas de poder, forma como que um “ciclo” de comparações, ou
aproximações entre enunciados, dentro de amplas perspectivas presentes em um
único autor; neste caso, um autor e duas obras (Les mots et les choses e
Segurança, Território, População)[1].
O projeto de Les mots et les choses se fez pela
hipótese de mostrar a história das ciências humanas, e quais modificações elas
promoveram na ordem do saber; foi isso que o nosso estudo procurou descrever
acerca do saber da linguagem. E assim, quanto mais o discurso das ciências
humanas se unificava, mais o sujeito se dispersava naquilo que era dito. É
justamente por esse motivo que a figura do homem, para Foucault, vivera
apenas por 200 anos na história do Mesmo, onde o seu rosto mal se constituiu e
prontamente se esvaiu. De tal sorte que é anunciada, pois, a morte desse homem
empírico-transcendental, que as ciências humanas quiseram, a todo instante,
analisar em sua essência; daí advém a crítica de Foucault. Com tudo isso,
podemos dizer que o fim desse homem para Foucault corresponde diretamente com a
morte de Deus anunciada por Nietzsche. Por conseguinte é pela força que a
linguagem possui que “talvez o homem esteja em vias de desaparecer”[2].
Ademais, essa força que a linguagem adquire está relacionada
com a literatura, como autêntica experiência da linguagem. É por isso que a loucura
se manifesta com avidez na arte, e se dá como um lugar onde se faz
presente o questionamento, pelas formas indispensáveis de se dizer o
impensável, ou inefável, a partir de Bataille, Kafka, Blanchot etc. Portanto, a
literatura é apresentada como transgressão na ordem das coisas.
* * *
O ponto central que Foucault apresentou em Les mots et
les choses, e que nós procuramos descrever minuciosamente neste estudo, é o
da crítica à busca por uma origem, por uma essência primeira como verdade do
homem; no entanto deve-se renunciar aquilo que Foucault chama de “sono
antropológico”. A arqueologia, não entendida como solução prática de alguma
questão posta em suspenso, mas antes compreendida como análise das condições
possíveis para a formação de determinado saber; ela evita que deixemos um
discurso sobrevir como uma verdade objetiva, desvelada, por uma razão que se
ilumina e evolui até chegar à sua maioridade; eis novamente a crítica do
arqueólogo do saber, que se faz por uma analítica ao despir a “verdade”
construída por um discurso pelo qual “cada época arma e faz valer certos
saberes”[3]...
Sobre os enunciados em Les mots et les choses, Gilles
Deleuze assim se expressa:
(...) não se trata de coisas nem de palavras. Nem
tampouco de objeto ou de sujeito. Nem mesmo de frases ou proposições, de análise
gramatical, lógica ou semântica. Longe de serem síntese de palavras e de
coisas, longe de serem composições de frases e de proposições, os enunciados,
ao contrário, são anteriores às frases, ou às proposições que os supõem
implicitamente, são formadores de palavras e objetos. [4]
O
arqueólogo trata, portanto, especificamente das análises de como se forma um
saber com um enunciado que se encontra dentro de determinado saber (da
linguagem, por exemplo)...
* * *
Para
“concluir”, nosso estudo abordou acerca dos modernos mecanismos de poder a
partir do chamado governo das populações, em sua efetividade na transformação
da gramática geral à filologia. Isso evidenciou que a temática do homem,
apresentado no campo “analítico” das ciências humanas como um ser vivo,
trabalhador e sujeito falante, se dá com a emergência da população “como
correlato de poder e objeto de saber”[5].
Esse mesmo homem, pensado, analisado e definido pelas “ciências humanas” é a imagem
da população no século XIX. O homem foi, portanto, o problema central do saber-poder,
que se realiza pela noção de governo – não de soberania – das
populações; e a linguagem, expressa pelo homem, sofre as transformações dentro
do campo epistêmico a partir das mesmas técnicas de poder, e também do objeto
que se emerge a partir delas: o saber da linguagem finalmente se efetiva
pelo governo das populações.
[1] Cabe salientar que, para Foucault, há uma recusa da
autoridade do autor sobre sua obra. Um texto pode ser utilizado como bem
entender por aqueles que estão em contato com determinado escrito. O autor não
é o que importa, mas antes a exterioridade dos escritos. MUCHAIL, Salma Tannus.
“Michel Foucault e o dilaceramento do autor”, in Foucault,
simplesmente. São Paulo, Edições Loyola, 2004, pp. 123-131.
[3]
Cf. ARAÚJO, Inês Lacerda. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba,
UFPR, 2008, p. 56.
[4]
DELEUZE, Gilles. Foucault. Tradução de Claudia Sant’Anna Martins. São
Paulo, Brasiliense, 1991, p. 24.