sábado, 19 de janeiro de 2013

Sereno Ano Novo


Para a minha irmãzinha Beatriz


     

SERENO. Adj. 1. Calmo, tranquilo, manso, sossegado.
 2. Que denota serenidade, paz, tranquilidade de espírito.
 3. Limpo de nuvens; claro, límpido.
4. Tênue vapor atmosférico, noturno; redento.
5. Chuva fina e pouco duradoura.

AURÉLIO




     Lívia prendia a asa da xícara entre o miúdo dedo indicador e o polegar. Olhava para o irmão, que fazia o mesmo ali em frente, e com vontade de lembrar-se de alguma historieta muito antiga, quase lagrimou, pois ninguém, nenhum de seus namorados conheceu tão bem os movimentos desses olhos quanto ele. Se caíssem devagar até o fim, é porque ficaria sem palavras no minuto seguinte; se subissem em diagonal até por cima das lentes, é porque iria rir do que acabou de dizer com muita seriedade. Lívia a tudo sinalizava com olhares antes de aprontar e seu irmão tinha o mapa completo desses traçados, detalhadamente cartografados pela memória mais amável que possuía, a mais terna de todas.


­     — Vi, já tenho quarenta e três e dores na coluna. Ontem corri na praça perto de uma menininha que se parecia com a Dominique. Você me livrou da Dominique, Vi. Semana passada o Haroldo me contou que ela morreu naquele acidente de avião em Guarulhos. Fiquei triste, enchi a cara e dizem que quase fui atropelado ao sair do bar, não enxerguei o carro e acho que foi o Roberto que me deixou em casa. Embora fosse picareta, eu gostava dela... Engraçado isso, eu poderia morrer no mesmo dia e não seria uma coincidência, apenas uma consequência da notícia, um complemento que levaria o acréscimo: “Ex-namorado é encontrado morto na Zona Norte”. Nem colocariam meu nome, morreria, então, com esse título e ainda diriam que não foi um carro a me matar, mas a saudade.


     — Já procurou um médico para ver essa coluna, Levi?


     Quando disse, não restava nem mais uma gota de café em sua xícara, dava até para ler a inscrição que figurava no fundo com a data de fabricação. Mil novecentos e noventa e sete. Foi o ano em que se separou do Pedro, um primo distante de uma amiga igualmente distante.


     — Uma vez fui ao teatro com ela. Sim, entrei num teatro com a Dominique. Começava com um triste monólogo de um palhaço e havia luzes sobre a plateia, algo como um pisca-pisca em cada rosto. Você estava lá, loirinha, multicolorida, e talvez estivesse infeliz por conta da separação. Também fiquei decepcionado com aquilo tudo, com as brigas em casa, com os copos quebrados, com o soco que eu queria dar nele e você entrou na frente. Ele pedia desculpas todos os dias... O Haroldo dizia: “desculpas não me comovem”, e passei a usar esta frase com ela. Às vezes passávamos dias inteiros sem conversar, porém essa frase ora ressoava, ora ficava na reserva, era uma defesa que eu não poderia perder, pois eu vencia a dizer aquilo. “Disse que não te amava porque estava com febre”. Desculpas não me comovem, Dominique.


     — Por que você está tão amargo hoje?


     — Sempre foi mania da nossa família recordar tragédias antes de alguém viajar. Levo você ao aeroporto, Vi, sem problemas, e não falo mais da Dominique até chegarmos, não falo mais daquela noite no teatro em que você chorava baixinho e me partiu o coração ao vê-la desorientada como um pássaro que não sabe mais o que fazer quando, por descuido, deixam a gaiola aberta. Mas por que não desci para te dar um abraço?


     — Porque você estava muito amargo, Levi.


     Ouviram, pouco depois, algumas buzinadas e pessoas a gritar. Sentiram que há frases que perturbam seus próprios falantes, mobilizam, deixam em xeque, arriscam a última nota. Talvez não fosse belo encerrar essa conversa ao som de automóveis e partir sem comentários alegres. Lívia ainda queria lembrar-se de uma história antes de abraçar o irmão e voar, contudo nada despontava nos dois e o silêncio reinava dentro de suas cabeças. Os dedos de Levi já provavam certa aflição por não dominarem um cigarro há quase meia-hora. A abstinência causava-lhe cócegas nas mãos, além da vontade de comentar passados melancólicos, acrescentar notas à medida que necessitava dar explicações mais convincentes sobre tudo o que fizera, sobre o porquê de não ter aberto a porta quando Dominique o visitara pela última vez ou a respeito da razão pela qual ele não atendera ao telefone que fez soar uma campainha irritante por longos trinta e dois minutos.


     — Quando éramos pequenos em casa, o cheiro de Ano Novo durava até o começo de abril. Impregnava os móveis, os talheres, os tapetes e, claro, as nossas roupas. Todos os meus vestidos tinham esse cheiro, impossível livrar-se dele antes de abril, e você dava as minhas bijuterias para as suas primeiras namoradas.


     — E você sabia disso?


    — Sim. A Laura me devolveu uma pulseira, aí você a roubou novamente para presentear a Lúcia.


     Pela primeira vez estavam a rir e a perguntar-se quem iria pedir perdão primeiro, embora não tivessem culpa, pois foi a rota voraz do viver, do simples viver, que disparou esses irmãos para linhas distantes e tratou assim de colocá-los em planos-sequência distintos. Perceberam que a vida possui múltiplas vozes, mas nenhuma parece disposta a contradizê-la na íntegra. Finalmente estavam a rir e a apertar as mãos com tamanha firmeza que o amor, sempre inexplicável, converteu-se em tímidas lágrimas e deixou o ar muito mais sereno.


sábado, 5 de janeiro de 2013

Não há perdão aos que pensam demais


                                                               Leandro Acácio e Sérgio L . Nastasi - janeiro 2013

                                            
                                          

Pensar é por vezes delito
tão pesado quanto um monólito
quando não é voz fina suave
é um estrugido dum grito
que soa como voa uma ave
e dança como gira o peão

Pensar é por vezes são
mas não é coisa de santo
nem todo olho é de lince
e eu, como a esfinge,
espero tanto

Se eu penso o deserto me torno areia
e as dunas:
esquecidas pedras de antigas sereias

Se eu sonho e não desperto,
transformo vigas e colunas
para suprimir a realidade
desprovida de plumas

Meu peito é uma caverna
de batidas rupestres
o tambor é o tempo
e a cor da miragem

Imagino paisagens em derredor
faço uma grande esfera
hoje nem conto aniversários
que dirá a idade da Terra

Sou eu esse fóssil
essa forma em mim escondida
o que não dura nas Horas
é a carne que vai sendo comida
é luz da veloz digestão
de todas as palavras escritas
penduradas num mesmo cordão
cordel das imagens aladas

Não há perdão aos que pensam demais
logo merecem outra sentença

Bendita sois entre os pensadores: Safo
poeta da ilha de Lesbos
antes que outra me convença


terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Atração oculta




 (ANA BORM e SÉRGIO L. NASTASI, dezembro 2012)

Pelo fato desviei


Atração oculta retorna



Não se faz poesia na alma

Quando não se termina a história.



Pelo jeito descuidei

Da atenção profunda que torna,

Da poesia que nos transporta a tantos recomeços.



E do tempo o qual não sei,

Que só sei que suporta,

Dá poesia e recomeços

Sopros e inspirações



E se soprares um cata-vento por aí,

Inspirada pela brisa,

Beijada pelo verso,

Zombes do tempo e refaça a rima



Ponha-me de cabeça pra baixo,

Ponho-te de cabelos pra cima.