segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Ouça-me


 
Ouça-me
A olhar minha boca

Para ver
Meus lábios trêmulos

Que doravante
Simples
E secos

Amplos
Como os ecos

Serão tristes
Mas meigos

Com sorrisos
Mais discretos



(Sérgio L. Nastasi - Agosto 2012)

domingo, 5 de agosto de 2012

Foucault e a moral dos prazeres


          A atividade sexual e as noções que acompanham sua existência, a partir de recortes históricos à maneira arqueológica, compõem o objeto de pesquisa de Michel FOUCAULT em sua História da Sexualidade. Ao analisarmos, ainda que sumariamente, os três tomos da referida obra — A vontade de saber, O uso dos prazeres e O cuidado de si —, temos “a moral dos prazeres” como seu aspecto central, que Foucault traça ao observar a literatura ocidental sobre a sexualidade, e a seguinte problemática: por que certos comportamentos sexuais são aceitos em determinadas épocas e regiões ao passo que em outras não? 
        Podemos tomar dois fragmentos abaixo como exemplo da produção de verdade a respeito do sexo e da formação de discursos que regulamentam a atividade sexual.

           “Existem, historicamente, dois grandes procedimentos para produzir a verdade do sexo.
           Por um lado as sociedades — e elas formam numerosas: a China, o Japão, a Índia, Roma, as nações árabes-muçulmanas — que se dotaram de uma ars erótica. Na arte erótica, a verdade é extraída do próprio prazer, encarado como prática e recolhido como experiência; não é por referência a uma lei absoluta do permitido e do proibido, nem a um critério de utilidade, que o prazer é levado em consideração, mas, ao contrário, em relação a si mesmo: ele deve ser conhecido como prazer, e portanto, segundo sua intensidade, sua qualidade específica, sua duração, suas reverberações no corpo e na alma. Melhor ainda: este saber deve recair, proporcionalmente, na própria prática sexual, para trabalhá-la como se fora de dentro e ampliar seus efeitos. Dessa forma constitui-se um saber que deve permanecer secreto, não em função de uma suspeita de infâmia que marque seu objeto, porém pela necessidade de mantê-lo na maior discrição, pois segundo a tradição, perderia sua eficácia e sua virtude ao ser divulgado. A relação com o mestre detentor dos segredos é, portanto, fundamental; somente este pode transmiti-lo de modo esotérico e ao cabo de uma iniciação em que orienta, com saber e severidade sem falhas, o caminhar do discípulo. Os efeitos dessa arte magistral, bem mais generoso que faria supor a aridez de suas receitas, devem transfigurar aquele sobre quem recaem seus privilégios: domínio absoluto do corpo, gozo excepcional, esquecimento do tempo e dos limites, elixir de longa vida, exílio da morte e de suas ameaças.
         Nossa civilização, pelo menos à primeira vista, não possui ars erotica. Em compensação é a única, sem dúvida, a pratica uma scientia sexualis. Ou melhor, só a nossa desenvolveu, no decorrer dos séculos, para dizer a verdade do sexo, procedimentos que se ordenam, quanto ao essencial, em função de uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciações e ao segredo magistral, que é a confissão.
 
       Desde a Idade Média, pelo menos, as sociedades ocidentais colocaram a confissão entre os rituais mais importantes de que se espera a produção de verdade: a regulamentação do sacramento da penitência pelo Concílio de Latrão em 1215; o desenvolvimento das técnicas de confissão que vêm em seguida; o recuo, na justiça criminal, dos processos acusatórios; o desaparecimento das provações de culpa (juramentos, duelos, julgamentos de Deus); e o desenvolvimento dos métodos de interrogatório e de inquérito; a importância cada vez maior ganha pela administração real na inculpação das infrações — e isso às expensas dos processos de transação privada — a instauração dos tribunais de Inquisição, tudo isso contribui para dar à confissão um papel central na ordem dos poderes civis e religiosos. A própria evolução da palavra ‘confissão’ e da função jurídica que designou já é característica: da ‘confissão’, garantia de status, de identidade e de valor atribuído a alguém por outrem, passou à ‘confissão’ como reconhecimento, por alguém, de suas próprias ações ou pensamentos. O indivíduo, durante muito tempo, foi autenticado pela referência dos outros e pela manifestação de seu vínculo com outrem (família, lealdade, proteção); posteriormente passou a ser autenticado pelo discurso de verdade que era capaz de (ou obrigado a) ter sobre si mesmo. A confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de individualização pelo poder (...).

        Scientia sexualis contra ars erotica: sem dúvida. Não obstante, é preciso notar que a ars erotica não desapareceu completamente da civilização ocidental; nem mesmo ficou sempre ausente do movimento pelo qual se procurou produzir a ciência do sexual. Existiu, na confissão cristã, e sobretudo na direção espiritual e no exame de consciência, na procura da união espiritual e do amor de Deus, toda uma série de procedimentos que se aparentam com uma arte erótica: orientação, pelo mestre, ao longo de uma via de iniciação, intensificação das experiências até em seus componentes físicos, majoração dos efeitos através do discurso que os acompanha; os fenômenos de possessão e de êxtase, tão frequentes nos catolicismo da Contra-Reforma, foram, sem dúvida efeitos incontroláveis que extravasaram dessa técnica erótica imante à sutil ciência da carne. E é necessário perguntar se, desde o século XIX — e sob o fardo de seu positivismo decente — a scientia sexualis não funciona, pelo menos em algumas de suas dimensões, como uma ars erotica.  Essa produção de verdade, mesmo intimidada pelo modelo científico, talvez tenha multiplicado, intensificado e até criado seus prazeres intrínsecos. Diz-se frequentemente, que não fomos capazes de imaginar novos prazeres. Pelo menos, inventamos um outro prazer: o prazer da verdade do prazer, prazer de sabê-la, exibi-la, descobri-la, de fascinar-se ao vê-la, dizê-la, cativa e capturar os outros através dela, de confiá-la secretamente, desalojá-la por meio de astúcia; prazer específico do discurso verdadeiro sobre o prazer”.


 FOUCAULT, M. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1999, pp. 57-8 e 69. Tradução brasileira: Maria T. C. Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque.