quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Lucrécio: a evaporação

Um belo trecho de Lucrécio: 


"A natureza intervém para que o Universo não se possa fixar limites a si próprio: com o espaço vazio limita os corpos, e ao vazio com os corpos o limita; assim os alternando, torna o todo infinito: mesmo, porém, que um dos dois não limitasse o outro, naturalmente se estenderia por si mesmo sem encontrar limite.

Nem de outro modo poderiam subsistir uma hora sequer o mar e a Terra e o luminoso templo do céu e a raça dos mortais e os sagrados corpos dos deuses. Dispersa do seu conjunto, a matéria seria levada, desagregando-se, pelos espaços infinitos; ou, antes, nem sequer se teria podido reunir para formar corpo algum, porquanto não poderiam juntar-se os elementos dispersos. 



Não é por certo em virtude de um plano determinado nem por um espírito sagaz que os átomos se juntaram por uma certa ordem; também não combinaram entre si com exatidão os movimentos que teriam; mas, depois de terem sido mudados de mil modos diferentes através de toda a imensidade, depois de terem sofrido pelos tempos eternos toda espécie de choques, depois de terem experimentado todos os movimentos e combinações possíveis, chegaram finalmente a disposições tais que foi possível o constituir-se tudo o que existe. E é por assim se terem conservado durante muitos anos, uma vez chegados aos devidos movimentos, que os rios saciam o ávido mar com suas grandes águas, que a Terra, aquecida pelo vapor do Sol, renova as suas produções, e florescem todas as raças de seres vivos, e se sustentam os fogos errantes pelo céu. De nenhum modo o fariam se do infinito não chegasse sempre mais matéria para reparar a tempo as perdas sofridas.

Assim como os seres vivos por natureza se dispersam, perdendo o corpo, quando privados de alimento, assim tudo se deve dissolver logo que lhe falte a matéria, por qualquer motivo desviada do caminho devido. E os choques vindos do exterior também não podem conservar o Universo, seja qual for a sua composição; é certo que podem os átomos chocar com maior frequência e manter qualquer ponto, até que cheguem outros e possa o conjunto completar-se; mas, entretanto, são obrigados a ressaltar e por aí mesmo dão aos elementos espaço e tempo de fuga, de modo que possam libertar-se do conjunto. É por isso que uma e outra vez têm de surgir elementos novos e, também, para que os próprios choques se mantenham, torna-se necessária uma força infinita de matéria a todo lado se estendendo".



LUCRÉCIO. Da natureza.  São Paulo, Abril Cultural, 1985,  Col. Os Pensadores, pp. 108-9.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

As Alcoólicas de Hilda Hilst




    

Ano passado, meu amigo Jefferson Alves (o "Beat") me emprestou um livro de Hilda HILST: O caderno rosa de Lori Lamby. Mas desta vez, em lugar de recortar trechos de um livro em prosa para postá-lo aqui, creio homenagear o velho Beat com uns versos da Hilda intitulados "Alcoólicas", de 1989: 

"I
É crua a vida. Alça de tripa e metal.
Nela despenco: pedra mórula ferida.
É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.
Como-a no livro da língua
Tinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-me
No estreito-pouco
Do meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vida
Tua unha púmblea, me casaco rosso
E perambulamos de coturno pela rua
Rubras, góticas, altas de corpo e copos.
A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima
Olho d’água, bebida. A vida é liquída.
II
Também são cruas e duras as palavras e as caras
Antes de nos sentarmos à mesa, tu e eu, Vida
Diante do coruscante ouro da bebida. Aos poucos
Vão se fazendo remansos, lentilhas d’água, diamantes
Sobre os insultos do passado e do agora. Aos poucos
Somos duas senhoras, encharcadas de riso, rosadas
De um amora, um que entrevi no teu hálito, amigo
Quando me permitiste o paraíso. O sinistro das horas
Vai se fazendo olvido. Depois deitadas, a morte
É um rei que nos visita e nos cobre de mirra.
Sussuras: ah, a vida é liquída.
III
Alturas, tiras, subo-as, recorto-as
E pairamos as duas, eu e a Vida
No carmim da borrasca. Embriagadas
Mergulhamos nítidas num borraçal que coaxa.
Que estiola galhofa. Que desempenados
Serafins. Nós duas nos vapores
Lobotômicas líricas, e a gaicagem
Se transforma em galarim, e é translúcida
A lama e é extremoso o Nada.
Descasco o dementado cotidiano
E seu rito pastoso de parábolas.
Pacientes, canonisas, muito bem-educadas
Aguardamos o tépido poente, o copo, a casa.
Ah, o todo se dignifica quando a vida é liquída.
IV
E bebendo, Vida, recusamos o sólido
O nodoso, a friez-armadilha
De algum rosto sóbrio, certa voz
Que se amplia, certo olhar que condena
O nosso olhar gasoso: então, bebendo?
E respondemos lassas lérias letícias
O lusco das lagartixas, o lustrino
Das quilhas, barcas, gaivotas, drenos
E afasta-se de nós o sólido de fechado cenho.
Rejubilam-se nossas coronárias. Rejubilo-me
Na noite navegada, e rio, rio, e remendo
 
Meu casaco rosso tecido de acuçena.
Se dedutiva e líquida, a Vida é plena".






segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Cioran, o Terrível!


Há algum tempo, um livro tem me tirado o fôlego, e isso  desde o seu título: Do inconveniente de ter nascido, do filósofo romeno Emil CIORAN. Sua maneira aforismática de escrever recorda Nietzsche, bem como uma certa letra furiosa que parece ter sido impressa com toda a força no papel. Letras terríveis! Assuntos terríveis como os de Schopenhauer. Mas por que terríveis? O que há de terrível na existência? Diria Cioran: a própria existência...

Abaixo, alguns dos aforismos que abrem aquele livro, em sua tradução espanhola:


"¿Con qué derecho os ponéis a rezar por mí? No tengo necesidad de intercesores, me las arreglaré solo. De un miserable, tal vez lo aceptaría: de nadie más, aunque se tratara de un santo. No tolero que se preocupen por mi salvación. Si le temo y le huyo, qué indiscretas resultan entonces vuestras plegarias. Dirigidlas a otra parte, de todas formas no estamos al servicio de los mismos dioses. Si los míos son impotentes, no hay razón para creer que los vuestros lo sean menos. Y aun suponiendo que sean tal y como los imagináis, todavía les faltaría el poder de curarme de un horror más viejo que mi memoria."

"El verdadero contacto entre los seres sólo se establece en la presencia muda, en la aparente no–comunicación, en el intercambio misterioso y sin palabras que se asemeja a la plegaria interior."

"Lo que sé a los sesenta años, ya lo sabía a los veinte. Cuarenta años de un largo, superfluo trabajo de comprobación."


"El pensamiento no es nunca inocente. Porque es implacable, porque es agresión, nos ayuda a romper nuestras trabas. Si se suprimiera lo que entraña de maldad, e incluso de demoníaco, habría que renunciar también al concepto de liberación."



CIORAN, Emil. Del inconveniente de haber nacido. Madrid, Taurus, 1998. Tradução: Esther Seligson, pp. 11-8.




Antes de dormir.



O aceno do infinito 


                           é como o gesto sutil
     
de quem tira os

                       óculos                                                para dormir.





quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Artaud e o Corpo sem Órgãos


"O corpo é o corpo,
existe por si
e não precisa de órgãos,


o corpo nunca é um organismo,
os organismos são inimigos do corpo,
as coisas que nós fazemos
amanham-se sozinhas
sem o concurso de qualquer órgão,

todo órgão é um parasita,
cumpre uma função parasitária
destinada a manter vivo um ser
que não deveria existir.

Os órgãos foram feitos unicamente para dar de comer ao seres,
quando estes desde o princípio que estão condenados e nenhuma
razão tem de ser".


ARTAUD, Antonin. Para acabar de vez com o juízo de Deus seguido de o Teatro da crueldade.



quarta-feira, 10 de agosto de 2011

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

PESSOA, Fernando.


Ando que ando que ando
Vou assim solto versando

Tem gente que lê a Pessoa
Antes de ler o Fernando

e eu na prosódia do tempo
vou meu verso cantando 

qual velho caramujo dentro
vou sem onde não sei quando

Tem gente que quer a mensagem
coragem pra vida moral
outros preferem a imagem

que negue o bem e negue o mal

Há quem escandalize as letras
fazendo escansões exaustivas
Mas há quem deslize por elas
sabendo que são vivas

Há os que as fazem de muletas
Outros que as querem: coração
mas como podem ser essas letras
coisas vãs de sentido vão

Por trás de Álvaro, Ricardo e Caeiro
musas de si mesmo
querem ver as almas ocultas
querem algum desespero

a nossa frente a vida a esmo
pelo tempo perseguida
a nossa nuca atenta ao preço
de passar despercebida

na boca do leitor a mudez
que o nosso poeta inventa
a letra sem vestido: nudez
a folha que não mais aguenta

A letra é um passado irreversível
a imagem sem o véu já foi mostrada
cabe agora ao leitor irresistível
transverter em sua a imagem dada


(Sérgio L. Nastasi e Leandro Acácio - Agosto 2011)


sábado, 6 de agosto de 2011

A Famigerada Nau dos Loucos



Em comemoração aos 50 anos de História da Loucura na Idade Clássica (1961), muitos eventos acontecem este ano. Ora, nosso blogue não poderia deixar de mencioná-lo. Mas, de tantos motes abordados neste livro, atiçaremos a sua curiosidade com apenas uma das belas descrições feitas por Michel Foucault que, acreditamos, não escapará à nossa lembrança tão cedo: a Stultifera Navis ou, simplesmente, a Nau dos Loucos.
Sobre ela, Foucault escreve:


A Narrenschiff é, evidentemente, uma composição literária, emprestada sem dúvida do velho ciclo dos argonautas, recentemente ressuscitado entre os grandes temas míticos e ao lado de Blauwe Schute de Jacob Van Oestvoren em 1413, de Borgonha. A moda é a composição dessas Naus cuja equipagem e heróis imaginários, modelos éticos ou tipos sociais, embarcam para uma grande viagem simbólica que lhes traz, senão a fortuna, pelo menos a figura de seus destinos ou suas verdades. É assim que Symphorien Champier compõe sucessivamente uma Nau dos Príncipes e das Batalhas da Nobreza em 1502, depois uma Nau das Damas Virtuosas em 1503. Existe também uma Nau da Saúde, ao lado de Blauwe Schute de Jacop van Oestvoren em 1413, da Narrenschiff de Brant (1497) e da obra de Josse Bade: Stultiferae erae naviculae scaphae fatuarum mulierum (1498). O quadro de Bosch, evidentemente, pertence a essa onda onírica. 

Mas de todas essas naves romanescas ou satíricas, a Narrenschiff é a única que teve existência real, pois eles existiram, esses barcos que levavam sua carga insana de uma cidade para outra. Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçavam-nos de seus muros; deixava-se que corressem pelos campos distantes, quando não eram confiados a grupos de mercadores e peregrinos. Esse costume era freqüente particularmente na Alemanha: em Nuremberg, durante a primeira metade do século XV, registrou-se a presença de 62 loucos, 31 dos quais foram escorraçados. Nos cinqüenta anos que se seguiram, têm se vestígios ainda de 21 partidas obrigatórias, tratando-se aqui apenas de loucos detidos pelas autoridades municipais. Eram freqüentemente confiados a barqueiros: em Frankfurt, em 1399, encarregam-se marinheiros de livrar a cidade de um louco que por ela passeava nu; nos primeiros anos do século XV, um criminoso louco é enviado do mesmo modo a Mayence. Às vezes, os marinheiros deixavam em terra, mais cedo do que haviam prometido, esses passageiros incômodos; prova disso é o ferreiro de Frankfurt que partiu duas vezes e duas vezes voltou, antes de ser reconduzido definitivamente para Kreuznach. Freqüentemente as cidades da Europa viam essas naus de loucos atracar em seus portos.


FOUCAULT, Michel. História da loucura na idade clássica. São Paulo, Perspectiva, 1978, pág. 13.