Giorgio AGAMBEN, um
dos mais interessantes filósofos contemporâneos, escreveu que "o título L'imannence:
une vie..., considerado como um bloco a-sintagmático e, no entanto,
indivisível, é algo como um diagrama que condensa em si o pensamento derradeiro
de Deleuze"[1]. Talvez possamos
acrescentar que, além de sintético, A
imanência: uma vida... é o texto em que o nosso autor aprofunda uma das noções
mais complicadas de sua filosofia para um leitor recente, mas que exibe a fatal
distinção imanência/transcendência que cruza toda sua obra, ou melhor, apresenta
aquilo que Deleuze perseguiu sua vida inteira: o “campo transcendental”. Publicaremos
aqui o texto na íntegra com o intuito de agenciar merecidas pesquisas.
A imanência: uma vida...
Gilles Deleuze
O que é um campo transcendental? Ele se distingue da
experiência, na medida em que não remete a um objeto nem pertence a um sujeito
(representação empírica). Ele se apresenta, pois, como pura corrente de
consciência a-subjetiva, consciência pré-reflexiva impessoal, duração
qualitativa da consciência sem um eu [moi]. Pode parecer curioso que o
transcendental se defina por tais dados imediatos: falaremos de empirismo
transcendental, em oposição a tudo que faz o mundo do sujeito e do objeto.
Há qualquer coisa de selvagem e de potente num tal empirismo
transcendental. Não se trata, obviamente, do elemento da sensação (empirismo
simples), pois a sensação não é mais que um corte na corrente da consciência
absoluta. Trata-se, antes, por mais próximas que sejam duas sensações, da
passagem de uma à outra como devir, como aumento ou diminuição de potência
(quantidade virtual). Será necessário, como conseqüência, definir o campo
transcendental pela pura consciência imediata sem objeto nem eu [moi], enquanto
movimento que não começa nem termina? (Até mesmo a concepção espinosista dessa
passagem ou da quantidade de potência faz apelo à consciência).
Mas a relação do campo transcendental com a consciência é
uma relação tão-somente de direito. A consciência só se torna um fato se um
sujeito é produzido ao mesmo tempo que seu objeto, todos fora do campo e
aparecendo como “transcendentes”. Ao contrário, na medida em que a consciência
atravessa o campo transcendental a uma velocidade infinita, em toda parte
difusa, não há nada que possa revelá-la. Ela não se exprime, na verdade, a não
ser ao se refletir sobre um sujeito que a remete a objetos. É por isso que o
campo transcendental não pode ser definido por sua consciência, a qual lhe é,
no entanto, co-extensiva – mas ela subtrai-se a qualquer revelação.
O transcendente não é o transcendental. Na ausência de
consciência, o campo transcendental se definiria como um puro plano de
imanência, já que ele escapa à toda transcendência, tanto do sujeito quanto do
objeto. A imanência absoluta é em
si-mesma: ela não existe em alguma coisa, para alguma coisa, ela não depende de
um objeto e não pertence a um sujeito.
Em Espinosa, a imanência não existe para a substância, mas a
substância e os modos existem na imanência. Quando o sujeito e o objeto, que
caem fora do campo de imanência, são tomados como sujeito universal ou objeto
qualquer aos quais a imanência é, ela própria, atribuída, trata-se de toda uma
desnaturação do transcendental que não faz mais do que reduplicar o empírico
(como em Kant), e de uma deformação da imanência que se encontra, então,
contida no transcendente. A imanência não está relacionada a Alguma Coisa como
unidade superior a toda coisa, nem a um Sujeito como ato que opera a síntese
das coisas: é quando a imanência não é mais imanência para um outro que não
seja ela mesma que se pode falar de um plano de imanência. Assim como o campo
transcendental não se define pela consciência, o plano de imanência não se
define por um Sujeito ou um Objeto capazes de o conter.
Diremos da pura imanência que ela é UMA VIDA, e nada
diferente disso. Ela não é imanência para a vida, mas o imanente que não existe
em nada é, ele próprio, uma vida. Uma vida é a imanência da imanência, a
imanência absoluta: ela é potência completa, beatitude completa. É na medida em
que ele ultrapassa as aporias do sujeito e do objeto que Fichte, em sua última
filosofia, apresenta o campo transcendental como uma vida, que não depende de
um Ser e não está submetido a um Ato: consciência imediata absoluta, cuja
atividade mesma não remete mais a um ser, mas não cessa de se situar em uma
vida. O campo transcendental torna-se então um verdadeiro plano de imanência
que re-introduz o espinosismo no mais profundo da operação filosófica. Não é
uma aventura semelhante que sobrevém a Maine de Biran, em sua “última
filosofia” (aquela que ele estava demasiadamente fatigado para levar a bom
termo), quando ele descobria, sob a transcendência do esforço, uma vida
imanente absoluta? O campo transcendental se define por um plano de imanência,
e o plano de imanência por uma vida.
O que é a imanência? uma vida... Ninguém melhor que Dickens
narrou o que é uma vida, ao tomar em consideração o artigo indefinido como
índice do transcendental. Um canalha, um mau sujeito, desprezado por todos,
está para morrer e eis que aqueles que cuidam dele manifestam uma espécie de
solicitude, de respeito, de amor, pelo menor sinal de vida do moribundo. Todo
mundo se apresta a salvá-lo, a tal ponto que no mais profundo de seu coma o
homem mau sente, ele próprio, alguma coisa de doce penetrá-lo. Mas à medida que
ele volta à vida, seus salvadores se tornam mais frios, e ele recobra toda sua
grosseria, toda sua maldade. Entre sua vida e sua morte, há um momento que não
é mais do que aquele de uma vida jogando com a morte. A vida do indivíduo deu
lugar a uma vida impessoal, e entretanto singular, que despreende um puro
acontecimento, liberado dos acidentes da vida interior e da vida exterior, isto
é, da subjetividade e da objetividade daquilo que acontece. “Homo tantum” do
qual todo mundo se compadece e que atinge uma espécie de beatitude. Trata-se de
uma heceidade, que não é mais de individuação, mas de singularização: vida de
pura imanência, neutra, para além do bem e do mal, uma vez que apenas o sujeito
que a encarnava no meio das coisas a fazia boa ou má. A vida de tal
individualidade se apaga em favor da vida singular imanente a um homem que não
tem mais nome, embora ele não se confunda com nenhum outro.
Essência singular, uma vida...
Não deveria ser preciso conter uma vida no simples momento
em que a vida individual confronta o morto universal. Uma vida está em toda
parte, em todos os momentos que tal ou qual sujeito vivo atravessa e que tais
objetos vividos medem: vida imanente que transporta os acontecimentos ou
singularidades que não fazem mais do que se atualizar nos sujeitos e nos
objetos. Essa vida indefinida não tem, ela própria, momentos, por mais próximos
que sejam uns dos outros, mas apenas entre-tempos, entre-momentos. Ela não
sobrevém nem sucede, mas apresenta a imensidão do tempo vazio no qual vemos o
acontecimento ainda por vir e já ocorrido, no absoluto de uma consciência
imediata. A obra romanesca de Lernet-Holenia coloca o acontecimento em um
entre-tempo que pode devorar regimentos inteiros. As singularidades ou os
acontecimentos constitutivos de uma vida coexistem com os acidentes d’avida
correspondente, mas não se agrupam nem se dividem da mesma maneira. Eles se
comunicam entre eles de uma maneira completamente diferente da dos indivíduos.
Parece mesmo que uma vida singular pode passar sem qualquer individualidade ou
sem qualquer outro concomitante que a individualize. Por exemplo, as crianças
bem pequenas se parecem todas e não têm nenhuma individualidade; mas elas têm
singularidades, um sorriso, um gesto, uma careta, acontecimentos que não são
características subjetivas. As crianças bem pequenas, em meio a todos os
sofrimentos e fraquezas, são atravessadas por uma vida imanente que é pura
potência, e até mesmo beatitude. Os indefinidos de uma vida perdem toda
indeterminação na medida em que eles preenchem um plano de imanência ou, o que
vem a dar estritamente no mesmo, constituem os elementos de um campo
transcendental (a vida individual, ao contrário, continua inseparável das
determinações empíricas). O indefinido como tal não assinala uma indeterminação
empírica, mas uma determinação de imanência ou de uma determinabilidade
transcendental. O artigo indefinido não é a indeterminação da pessoa a não ser
na medida em que é a determinação do singular. O Uno não é o transcendente que
pode conter mesmo a imanência, mas o imanente contido em um campo transcendental.
O Uno é sempre o índice de uma multiplicidade: um
acontecimento, uma singularidade, uma vida... Pode-se sempre invocar um
transcendente que recai fora do plano de imanência, ou mesmo que atribui
imanência a si próprio: permanece o fato de que toda transcendência se
constitui unicamente na corrente de consciência imanente própria a seu plano. A
transcendência é sempre um produto de imanência.
Uma vida não contém nada mais que virtuais. Ela é feita de
virtualidades, acontecimentos, singularidades. Aquilo que chamamos de virtual
não é algo ao qual falte realidade, mas que se envolve em um processo de
atualização ao seguir o plano que lhe dá sua realidade própria. O acontecimento
imanente se atualiza em um estado de coisas e em um estado vivido que fazem com
que ele aconteça. O plano de imanência se atualiza, ele próprio, em um Objeto e
um Sujeito aos quais ele se atribui. Mas, por mais separáveis que eles sejam de
sua atualização, o plano de imanência é, ele próprio, virtual, na medida em que
os acontecimentos que o povoam são virtualidades. Os acontecimentos ou
singularidades dão ao plano toda sua virtualidade, como o plano de imanência dá
aos acontecimentos virtuais uma plena realidade. O acontecimento considerado
como não-atualizado (indefinido) não carece de nada. É suficiente colocá-lo em
relação com seus concomitantes: um campo transcendental, um campo de imanência,
uma vida, singularidades. Uma ferida se encarna ou se atualiza em um estado de
coisas e em um vivido; mas ela própria é um puro virtual sobre o plano de
imanência que nos transporta em uma vida. Minha ferida existia antes de mim...
Não uma transcendência da ferida como atualidade superior, mas sua imanência
como virtualidade, sempre no seio de um milieu (campo ou plano). Há uma grande
diferença entre os virtuais que definem a imanência do campo transcendental, e
as formas possíveis que os atualizam e que os transformam em alguma coisa de
transcendental.
[1]
ALLIEZ, Éric (org.). Gilles Deleuze: uma
vida filosófica. São Paulo, Ed. 34, 2000, pp. 169-192. Tradução brasileira:
Cláudio William Veloso.
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