sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Alvoroço de moleca



Para Penélope Martins.


Será que Julinha vai se enredar num lençol molhado que a tia pôs na bacia? Não, não. Nada disso... Ela só vai passar a língua na beirada da bacia e sentir o gosto do alumínio.

"Menina!!!".

"Ué! Não pode, não?".

"Onde já se viu? Aí tem cloro e alvejante e amaciante e cândida e dínamo e detergente e tudo!".

Julinha não se conformou com isso, raptou a cesta de pregadores e saiu a colocá-los entre os vasos de samambaias que não vingavam.

"Para já de alvoroço, moleca!".

Com os pregadores verdes, Julinha fazia cri-cri e repetia os nomes com que tinha batizado uns grilos. Aos amarelos, as lagartixas. Aos azuis, as drosófilas. Será que não ficavam com ciúmes? Achava que não, ora: já tinha cinco primos com o mesmo nome! Quatro Carlos de sete anos e mais a prima Carla que, para Julinha, era um Carlos também.

"Mas, tia, o que é drosófila?".

"É aquela mosca que entrou na sua boca ontem e está a zunir desde a hora que você acordou!".



segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Um Soneto de Florbela



PIOR VELHICE

FLORBELA ESPANCA

Sou velha e triste. Nunca o alvorecer
Dum riso são andou na minha boca!
Gritando que me acudam, em voz rouca,
Eu, náufraga da Vida, ando a morrer!

A Vida, que ao nascer, enfeita e touca
De alvas rosas a fronte da mulher,
Na minha fronte mística de louca
Martírios só poisou a emurchecer!

E dizem que sou nova ... A mocidade
Estará só, então, na nossa idade,
Ou está em nós e em nosso peito mora?!

Tenho a pior velhice, a que é mais triste,
Aquela onde nem sequer existe
Lembrança de ter sido nova ... outrora ...







(Do "Livro de Mágoas")

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

DOM JUAN NOS INFERNOS


                                                                                      Charles Baudelaire, em "As Flores do Mal"



Quando dom Juan desceu ao subterrâneo rio
E logo que a Caronte o óbolo pagou,
Como Antístenes, um mendigo de olhar frio
Com braço vingativo os remos agarrou.

Os seios flácidos e as vestes entreabertas,
Mulheres se torciam sob um céu nevoento,
E, qual rebanho vil de vítimas ofertas,
Atrás dele rosnava em atroz lamento.

Sganarello a rir a paga reclama,
Enquanto, erguendo o dedo, apontava dom Luís
A cada morto que nas margens deambulava
O filho audaz que lhe ultrajara a fronte gris.

Em seu álgido luto, Elvira, casta e esguia,
Junto ao pérfido esposo, amante seu de outrora,
Parecia exigir-lhe uma última alegria
Cujo sabor não recordasse o fel de agora.

Ereto na couraça, um homem pétreo e imenso
Golpeava a onda noturna e ao leme as mãos prendia;
Mas o tranqüilo herói, por sobre a espada penso,
Olhava a água passar e em torno nada via.


domingo, 1 de janeiro de 2012

Enterro


 Ana Borm e Sérgio L. Nastasi - Janeiro 2012



Silêncio de tua alma,
doce e puro enterro
nosso amor se foi,
ou nunca existiu.

Sombrio é teu quarto
rosto de um perro
amoroso de acalantos
ou de cantos altos

Garanto que minhas preces
já terminaram em pobres palavras
Seu rosto,
minha consciência sufocada.

Garanto que pouco garanto
canto quase aos sussurros
e dou murros aos montes
no céu negro distante

Já distante de tuas mãos
Consigo enxergar o vazio
suspiro na noite escondida,
me assombro, triste solidão

Não sei se a noite se esconde
ou se eu mesmo a assombro,
mas sigo a falar de vazio
e imaginar teus belos ombros

Ainda deparo-me com a noite
que me faz chorar
e penso que vou morrer
antes de te abraçar