A atividade sexual e as noções que acompanham
sua existência, a partir de recortes históricos à maneira arqueológica, compõem o objeto de pesquisa de Michel FOUCAULT em
sua História da Sexualidade. Ao
analisarmos, ainda que sumariamente, os três tomos da referida obra — A vontade de saber, O uso dos prazeres e O
cuidado de si —, temos “a moral dos prazeres” como seu aspecto central, que
Foucault traça ao observar a literatura ocidental sobre a sexualidade, e a
seguinte problemática: por que certos comportamentos sexuais são aceitos em
determinadas épocas e regiões ao passo que em outras não?
Podemos tomar dois fragmentos abaixo como exemplo da produção de verdade a respeito do sexo e da formação de discursos que regulamentam a atividade sexual.
“Existem, historicamente, dois grandes procedimentos para
produzir a verdade do sexo.
Por um lado as sociedades — e elas formam numerosas: a
China, o Japão, a Índia, Roma, as nações árabes-muçulmanas — que se dotaram de
uma ars erótica. Na arte erótica, a
verdade é extraída do próprio prazer, encarado como prática e recolhido como
experiência; não é por referência a uma lei absoluta do permitido e do
proibido, nem a um critério de utilidade, que o prazer é levado em
consideração, mas, ao contrário, em relação a si mesmo: ele deve ser conhecido
como prazer, e portanto, segundo sua intensidade, sua qualidade específica, sua
duração, suas reverberações no corpo e na alma. Melhor ainda: este saber deve
recair, proporcionalmente, na própria prática sexual, para trabalhá-la como se
fora de dentro e ampliar seus efeitos. Dessa forma constitui-se um saber que
deve permanecer secreto, não em função de uma suspeita de infâmia que marque
seu objeto, porém pela necessidade de mantê-lo na maior discrição, pois segundo
a tradição, perderia sua eficácia e sua virtude ao ser divulgado. A relação com
o mestre detentor dos segredos é, portanto, fundamental; somente este pode
transmiti-lo de modo esotérico e ao cabo de uma iniciação em que orienta, com
saber e severidade sem falhas, o caminhar do discípulo. Os efeitos dessa arte
magistral, bem mais generoso que faria supor a aridez de suas receitas, devem
transfigurar aquele sobre quem recaem seus privilégios: domínio absoluto do
corpo, gozo excepcional, esquecimento do tempo e dos limites, elixir de longa
vida, exílio da morte e de suas ameaças.
Nossa civilização, pelo menos à primeira vista, não possui ars erotica. Em compensação é a única,
sem dúvida, a pratica uma scientia
sexualis. Ou melhor, só a nossa desenvolveu, no decorrer dos séculos, para
dizer a verdade do sexo, procedimentos que se ordenam, quanto ao essencial, em
função de uma forma de poder-saber rigorosamente oposta à arte das iniciações e
ao segredo magistral, que é a confissão.
Desde a Idade Média, pelo menos, as sociedades ocidentais
colocaram a confissão entre os rituais mais importantes de que se espera a
produção de verdade: a regulamentação do sacramento da penitência pelo Concílio
de Latrão em 1215; o desenvolvimento das técnicas de confissão que vêm em
seguida; o recuo, na justiça criminal, dos processos acusatórios; o
desaparecimento das provações de culpa (juramentos, duelos, julgamentos de Deus);
e o desenvolvimento dos métodos de interrogatório e de inquérito; a importância
cada vez maior ganha pela administração real na inculpação das infrações — e
isso às expensas dos processos de transação privada — a instauração dos
tribunais de Inquisição, tudo isso contribui para dar à confissão um papel
central na ordem dos poderes civis e religiosos. A própria evolução da palavra ‘confissão’
e da função jurídica que designou já é característica: da ‘confissão’, garantia
de status, de identidade e de valor
atribuído a alguém por outrem, passou à ‘confissão’ como reconhecimento, por
alguém, de suas próprias ações ou pensamentos. O indivíduo, durante muito
tempo, foi autenticado pela referência dos outros e pela manifestação de seu
vínculo com outrem (família, lealdade, proteção); posteriormente passou a ser
autenticado pelo discurso de verdade que era capaz de (ou obrigado a) ter sobre
si mesmo. A confissão da verdade se inscreveu no cerne dos procedimentos de
individualização pelo poder (...).
Scientia sexualis
contra ars erotica: sem dúvida. Não
obstante, é preciso notar que a ars
erotica não desapareceu completamente da civilização ocidental; nem mesmo
ficou sempre ausente do movimento pelo qual se procurou produzir a ciência do
sexual. Existiu, na confissão cristã, e sobretudo na direção espiritual e no
exame de consciência, na procura da união espiritual e do amor de Deus, toda
uma série de procedimentos que se aparentam com uma arte erótica: orientação,
pelo mestre, ao longo de uma via de iniciação, intensificação das experiências
até em seus componentes físicos, majoração dos efeitos através do discurso que
os acompanha; os fenômenos de possessão e de êxtase, tão frequentes nos
catolicismo da Contra-Reforma, foram, sem dúvida efeitos incontroláveis que
extravasaram dessa técnica erótica imante à sutil ciência da carne. E é
necessário perguntar se, desde o século XIX — e sob o fardo de seu positivismo
decente — a scientia sexualis não
funciona, pelo menos em algumas de suas dimensões, como uma ars erotica. Essa produção de verdade, mesmo intimidada
pelo modelo científico, talvez tenha multiplicado, intensificado e até criado
seus prazeres intrínsecos. Diz-se frequentemente, que não fomos capazes de
imaginar novos prazeres. Pelo menos, inventamos um outro prazer: o prazer da
verdade do prazer, prazer de sabê-la, exibi-la, descobri-la, de fascinar-se ao
vê-la, dizê-la, cativa e capturar os outros através dela, de confiá-la
secretamente, desalojá-la por meio de astúcia; prazer específico do discurso
verdadeiro sobre o prazer”.
FOUCAULT, M. História da sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro, Graal, 1999, pp. 57-8 e 69. Tradução brasileira: Maria T. C. Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque.