terça-feira, 7 de junho de 2011

PAULINHO DA VIOLA E A CRÔNICA DE SEUS SAMBAS



SÉRGIO LIMA NASTASI





       O jogo do bicho é uma espécie de subcrime, ou melhor, uma contravenção. Sabemos da sua importância, da sua relação (in)direta com a própria confecção do carnaval carioca. Alguns dirigentes, podemos dizer, algumas personagens ou personalidades das Escolas de Samba, tornaram-se assim quase que folclóricas. Ora, Seu Natal da Portela, por exemplo, era "bicheiro". Aqui, ainda que timidamente, queremos mostrar que, no que se refere a estas práticas, à malícia ou malemolência da vida suburbana (como dizem), o samba perpassa por aí com seu olhar crônico e procura emplacar letras que, em torno de uma vivência sempre dita de antemão como periférica, destaca tais personagens e costumes.

      Vemos que em seu samba, Paulinho da Viola recorre a diversos assuntos desse modo. Tomemos alguns de seus versos para elucidar isso, como tão logo aparece em Pode guardar as panelas:

Dei pinote adoidado/ pedindo emprestado e ninguém emprestou/ fui no seu Malaquias/ querendo fiado mas ele negou/ meu ordenado apertado, coitado, engraçado/ desapareceu/ fui apelar pro cavalo, joguei na cabeça/ mas ele não deu.[1]

Ou mesmo na letra de No pagode do Vavá, onde menciona a loteria:

Um assovio de bala cortou o espaço e ninguém machucou/ muito malandro corria quando Elton Medeiros chegou./ Minha gente não fique apressada que não há motivo pra ter correria./ Foi um nego que fez 13 pontos e ficou maluco de tanta alegria.[2]


Os “compositores do morro”, sambistas do chamado “samba de raiz”, sempre reportaram em seus versos — sejam eles registrados em discos ou improvisados como em forma de partido alto — uma espécie de crônica. A nossa concepção de crônica, aqui, consiste exatamente nesse ponto de vista, nessa análise voltada para o cotidiano na medida em que é feito um exame sagaz da vida, o olhar crônico ao contar suas próprias histórias numa espécie de jornalismo espontâneo, de narrativa natural.





Um caso curioso aparece em O velório do Heitor:

Havia um certo respeito/ no velório do Heitor/ muita gente concordava/ que apesar de catimbeiro/ era bom trabalhador/ houve choro e ladainha/ na sala e no corredor/ e por ser considerado/ seu desaparecimento/ muita tristeza causou.[3]

Podemos notar também em Dona Santina e Seu Antenor:
 
Dona Santina deu anteontem uma feijoada e me convidou/ em homenagem à volta do seu Antenor/ que aos vinte anos de casado escapuliu/ quando viu os olhos da Sandrinha, se amarrou./ Ela nos seus 22/ ele com 53/ imaginem vocês a notícia o que causou no local.[4]


Neste aspecto, Coisas do mundo, minha nega é marcante:


Venho do samba há tempo, nega/ venho andando por aí/ primeiro encontrei Zé fuleiro/ que me falou de doença/ que a sorte nunca lhe chega/ que está sem amor e sem dinheiro/ perguntou se não dispunha de algum que pudesse dar/ puxei então da viola/ cantei um samba pra ele/ foi um samba sincopado/ que zombou do seu azar. [5]


     Em 14 anos e A dança da solidão, uma fala paterna parece aconselhar os atos das personagens. Na primeira, a respeito de uma vocação, por assim dizer, e na segunda, um referencial daqueles que provêm da experiência de uma pessoa mais velha, algo típico no samba.



Tinha eu quatorze anos de idade/ quando meu pai me chamou/ perguntou-me se eu queria estudar Filosofia, Medicina ou Engenharia/ tinha eu de ser doutor./ Mas a minha aspiração/ era ter um violão/ para eu me tornar sambista/ ele então me aconselhou: “sambista não tem valor”/ nessa terra de doutor/ (e seu doutor...)/ o meu pai tinha razão. [6]


Camélia ficou viúva/ Joana se apaixonou/ Maria tentou a morte por causa do seu amor/ Meu pai sempre me dizia: “meu filho tome cuidado/ quando eu penso no futuro/ não me esqueço do passado”. [7]
 


          Em suma, o samba é tido como algo periférico, marginal. Muitas questões podem derivar daí. O saber que ele nos apresenta, pois, aparece como qualquer coisa sem valor em relação aos supostos doutos valores de que 14 anos menciona. A venda de sambas, por exemplo, até mesmo como modo de o compositor sobreviver, é também criticada nesta letra. O sambista jaz num esquecimento, diz Paulinho, ninguém mais se lembra do autor de tal samba, de que morro ou de que escola ele veio. No outro caso, o de A dança da solidão, a voz paterna volta-se agora a uma situação particular, digamos, mais familiar. Vimos aí duas fatalidades: um sambista esquecido e alguém desiludido.





         Podemos dizer que alguns “bodes” que a malandragem passa, assim como os ditos “barracos” eventualmente causados por vizinhas faladeiras e brigões de todo o tipo, também não ficam de escanteio. Com melodia e arranjo incomuns no LP Nervos de aço, Paulinho apresentou uma ocorrência de polícia no samba Comprimido:
 

Deixou a marca dos dentes dela no braço/ pra depois mostrar pro delegado/ se acaso ela for se queixar/ da surra que levou/ por causa do ciúme incontrolado. [8]

Dívidas, uma parceria com Elton Medeiros, narra um “bate-boca danado” entre curiosas figuras.

Descendo ladeira abaixo numa grande correria/ para ver se não perdia a primeira condução/ esqueceu de resgatar uma conta que devia/ a um tal de Oliveira, marido da Conceição/ que pela mulher pressionado foi receber o dinheiro/  só encontrando a Inocência deu início a discussão/ disse tudo o que sentia sem medir as consequências/ num bate-boca danado diante do barracão.[9]

        Enfim, poderíamos passar o dia inteiro ouvindo Paulinho da Viola e a crônica de seus sambas, bem como ao mesmo tempo analisando diversas de suas letras. Aqui, tivemos muito mais o intuito de reavivar uma antiga ideia de pensar o que é inerente ao samba de tal modo que possamos distingui-lo do pagode, por exemplo. E talvez seja esta maneira de apresentar as ocorrências — e as urgências, diga-se — da vida que arranja o samba como crônica da nossa gente.
 







[1] PAULINHO DA VIOLA. A dança da solidão. 1972; Zumbido. 1979.
[2] Ibid., A dança da solidão. 1972.
[3] Ibid., Memórias cantando. 1976.
[4] Ibid., Paulinho da viola. 1971.
[5] Ibid., Paulinho da Viola. 1968.
[6] Ibid., Samba na madrugada – Paulinho da viola e Elton Medeiros. 1968.
[7] Ibid., A dança da solidão. 1972.
[8] Ibid., Nervos de aço. 1973
[9] PAULINHO DA VIOLA & ELTON MEDEIROS. Memórias cantando. 1976.

Um comentário:

  1. Pois é, Sérgio. O samba de raiz, e o samba de Paulinho, dão margem para um dia inteiro de audição. Ou para uma enciclopédia inteira de estudos e descobertas. E fornecem também matéria-prima apenas para curtir, sem precisar filosofar em nada. Tem força para inspirar um intelectual, ou agradar o mais desinformado dos mortais. É esse um dos mistérios do (bom) samba. O poder de mexer, de alguma forma, com algum cantinho de nossa alma.

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